terça-feira, 14 de junho de 2011

Educação Física na Sala de Aula

Acabei de ler e não pude deixar de postar, ótimo texto!
Escrito por Prof. João Batista Freire   
sexta, 23 de março de 2007

Prof. João Batista Freire

ImageAprendendo a sentar
Tenho bastante dificuldade com cálculos. Parece que fiquei traumatizado com meus professores de matemática, e julgo que o principal responsável foi o primeiro deles, no início do ginásio. Chamava-se Elpídeo, os cabelos sempre desalinhados, a barba por fazer. Usava gravatas listradas e folgadas, o primeiro botão da camisa desabotoado, tudo isso encimado por um paletó cinza puído nas mangas e na gola. Ele chegava e começavam os castigos. Nada aprendi de sua matéria, mas aprendi a detestar aquela disciplina. Levei anos e anos até reconhecer o valor que a matemática tem na vida de todos nós.
Depois vieram os economistas oficiais e suas mentiras, transformando o Brasil num emaranhado numérico. Eles têm números para explicar tudo, especialmente o passado e o futuro; quanto ao presente, aparentemente o ignoram. Minha tia, que é bem velhinha, costuma acertar mais nas previsões que eles (desculpem os bons economistas, que, sem dúvida, existem).
Mas, vez por outra, umas continhas são úteis, como, por exemplo, somar o número de horas que a gente passou sentada em uma carteira escolar, aprendendo, segundo nos diziam, as coisas da ciência. Somando as horas do ensino fundamental (oito anos, 200 dias letivos em cada), mais as horas do ensino médio (três anos, 200 dias letivos em cada), são aí onze anos multiplicados por 200, ou seja (espera só um pouquinho, estou aqui ligando a calculadora...), 2200 dias dentro de uma sala de aula.
Com boa vontade a gente ficou, a cada dia, quatro horas sentada, assistindo aulas, portanto, 8.800 horas ouvindo falar de matemática, português, geografia, história, química, física, etc, etc. É tanto tempo que daria para aprender muito sobre qualquer coisa. Olha, se eu passasse 8.800 horas treinando jogar pião, bolinha de gude, pular corda, pega-pega, iô-iô, iria parar no circo, e num desses circos bacanas como o de Soleil, no picadeiro central. No entanto, o que é que aprendi de matemática, de física, de geografia (uma professora queria que eu estudasse as características do sub-solo da Mauritânia)?
Por baixo, cada um de nós que concluiu o ensino médio teve 2000 horas de matemática. E o que é que restou de conhecimento sobre essa matéria? Pode ser que a gente tenha até vergonha de responder, mas, sem dúvida alguma, a ficar sentada a gente aprendeu. Ora, quem fica sentado 8800 horas, aprende a ficar sentado, porque o que a gente aprende, mesmo, é a atitude que tomou. O que cada um de nós sabe está de acordo com as atitudes que teve que tomar ao longo da vida. Atitudes de coragem ensinam a ser corajoso, as de covardia ensinam a ser covarde; atitudes amorosas ensinam a amar, enquanto que as de indiferença ensinam a ser indiferente.
Se quisermos que nossos alunos aprendam a pensar, eles precisam, em nossas aulas de biologia, química ou história, ter atitudes de pensar. Quando amadurecemos, por fim, somos um conjunto de atitudes tomadas. As pessoas que trabalham com educação física dedicam-se muito pouco a refletir sobre uma outra educação física que é praticada nas escolas, não aquela que os alunos fazem quando vão para a quadra, mas a que fazem na sala de aula, quatro horas por dia, 200 dias por ano, 11 anos, 8800 horas no total.
Isso é educação física, educação corporal, marcante, significativa, decisiva para a formação de cada um de nós no tempo da escolaridade. É preciso refletir sobre o que isso representa para os alunos. Por exemplo, como já mencionei anteriormente, ficar tanto tempo sentado ensina, antes de tudo, a ficar sentado. A gente pode não aprender biologia, mas aprende a sentar. Do ponto de vista físico, isso já seria um desastre, pois não há qualquer orientação para evitar os danos contra a estrutura corporal.
Além disso, ninguém se preocupa com o fato de que é impossível manter a concentração depois de horas nessa posição. Duvido que algum professor permaneça atento a qualquer assunto se tiver que ficar sentado e imóvel mais que uns quarenta minutos. O professor não consegue, mas o aluno tem que conseguir, não é? Tomando inicialmente apenas esse aspecto, um profissional de educação física que pudesse atuar com maior prestígio e competência na escola, iria orientar o currículo para impedir que qualquer aluno permanecesse mais que uns trinta, quarenta minutos sentado e imóvel.
Se ele agisse profissionalmente para impedir isso, estaria impedindo a prática de uma atitude, cujas conseqüências, se não se fizerem sentir de imediato, repercutirão prejudicialmente ao longo dos anos. Em seguida, durante os trinta, quarenta minutos de posição sentada de cada vez, ele e os demais professores orientariam cada aluno a sentar de maneira mais relaxada, mais correta, de modo a fixar hábitos posturais saudáveis. Se o problema parasse por aí, restrito aos prejuízos físicos, corrigia-se, quem sabe, com uma boa dose de terapias e reeducação corporal, caso o paciente tivesse consciência do mal que lhe foi feito.
Mas o problema não pára aí, pois, quem é físico, é também psicológico e social, e uma coisa nunca é separada da outra. Onze anos sentado não significa apenas aprender (mal) a sentar, tradução de uma postura corporal. Foram 8800 horas confinando o aluno a um espaço aproximado de meio metro quadrado, onde, muitas vezes, não era permitido se mexer, nem falar, rir ou chorar. Nessa posição, também é muito difícil criar, muito menos ainda se comunicar ou cooperar. Engraçado é que, depois de onze anos de isolamento individual, dão um diploma para o aluno e lhe dizem: agora vá e viva como um cidadão, assuma seu papel na sociedade.

As repercussões de um confinamento
Supostamente a escola não é uma instituição cuja produção se aplique integralmente nela mesma. Sua principal produção é o conhecimento, que o aluno deveria levar para exercitar em sua vida pessoal e nas suas relações em sociedade. Com seus conhecimentos, que podem ser ampliados na Universidade, o aluno contribuirá para que sua vida pessoal e a das outras pessoas de sua sociedade, melhorem. Melhorem no sentido de conforto, de harmonia social, segurança, saúde, felicidade.
Porém, quem aprendeu a viver só, por qual motivo, de repente, sairia pelo mundo pregando solidariedade, ou melhor, praticando solidariedade? Mas é claro que a escola não é só confinamento em sala de aula. O espaço de socialização vai bem além da sala. Acho bom que os professores de educação física acordem. Eles acham que se ensina educação física apenas nas poucas horas destinadas a essa disciplina fora da sala de aula, e se enganam redondamente. Não percebem que há uma forte presença de educação corporal ocorrendo dentro de sala de aula.
E já que tudo o que a gente aprende na escola repercute na vida, reparem em algumas hipóteses acerca de como podem se dar essas repercussões na vida de cada um de nós. Antes, porém, deixemos claro que a escola não é a única vilã. Quanto aos problemas de postura corporal, não é só ela que nos habitua mal. Há também os hábitos familiares, a televisão, o videogame e o computador.
Para interagir com esses ambientes e seus objetos, costumeiramente, as crianças praticam posições corporais inadequadas que se transformam em vícios e, posteriormente, em danos à saúde. Com muito sacrifício, pode-se corrigir, ao menos parcialmente, tais problemas. Creio que as repercussões mais negativas são as outras, que decorrem da atitude corporal restritiva, na escola e fora dela, as que atingem a formação intelectual, a formação social, a formação emocional, sensível e moral, entre outras possíveis. Vamos a elas.
Não afirmo que a escola nada ensina que se aproveite. Todos aprendemos boas coisas em matemática, em ciências, história ou português. Porém, após terminarmos o ensino médio, quando paramos para inventariar o conhecimento adquirido, não sobra muito. Boa parte do que teríamos que aprender durante a formação básica, é sacrificada aos famigerados vestibulares. Com freqüência esquecemos que na base dos cálculos, das palavras, das frases, da memória e do pensamento lógico, estão as atitudes de criatividade, de autonomia, de obediência e de transgressão, as iniciativas e o poder de decisão, entre outras possibilidades.
A atitude que somos obrigados a assumir nas salas de aula muitas vezes coíbe atitudes de independência, uma vez que reflete a submissão que a escola impõe aos alunos. Não poder conversar, não poder mover-se, não poder erguer-se, tem a ver com submissão e não com coragem, iniciativa e criatividade. Antes de tudo, a atitude de permanecer sentado durante tanto tempo em uma sala de aula ensina a ficar sentado. Se a escola pretende, realmente, ensinar criatividade, tem que provocar atitudes criativas nos alunos; se pretende ensinar autonomia, deve produzir ambientes favoráveis à autonomia; se pretende que os alunos sejam independentes e inventivos, tem que conviver com as transgressões.
Ainda em relação às questões intelectuais, gostaria de chamar a atenção para um problema muito grave que toca de perto nos problemas sociais. Trata-se da maneira individualista de pensar que desenvolvemos em nossas escolas. Aprendemos durante onze anos a nos manter isolados, sem nos comunicar com os outros, a receber e a resolver problemas apenas individuais. Os mais graves problemas do mundo atual, no entanto, são aqueles que exigem atitudes coletivas.
Do ponto de vista intelectual, tais problemas exigiriam que aprendêssemos a pensar junto com os outros, trocando idéias, chegando a acordos, sem impor nosso modo de pensar como se fosse a verdade final. De que forma pode-se resolver o problema da destruição das florestas tropicais, que é um problema coletivo, se só sabemos pensar individualmente? Geralmente não aprendemos, nas escolas, a conectar nossos pensamentos com os pensamentos dos outros alunos. Pretender que, depois de onze anos de isolamento, os alunos sejam capazes de socializar suas idéias, é uma grande ilusão.
Trata-se de uma questão intelectual fortemente ligada à formação social, mesmo porque não se pode separar em escaninhos desconectados as diversas formações dos alunos. De modo geral, a escola pouquíssima importância dá a qualquer formação que não seja a intelectual e a moral. Isolar os alunos em um espaço de meio metro quadrado durante 8800 horas, indica a estreita visão da escola quanto à formação social. Nosso sistema educacional forma, e mal, indivíduos. Para serem educados socialmente, nossos alunos teriam que ter, ao longo da formação, atitudes sociais.
Deveriam poder fazer, além dos trabalhos individuais, tarefas e provas coletivas, além de ter contato permanente com as coisas que acontecem fora da escola. Por que um aluno não pode realizar consultas sobre os conteúdos exigidos nas provas? Uma atitude realista da escola seria reconhecer que hoje, com o grande acesso que temos à informação, os alunos não precisam mais guardar na memória todos os dados necessários à realização de uma tarefa; eles deveriam poder consultar bancos de dados para cumprir suas tarefas, inclusive, as provas. Em nenhum outro momento da vida eles terão que resolver seus problemas solitariamente.
Sempre poderão recorrer aos livros, aos amigos, à Internet, à televisão, aos parentes, etc. Só a escola ainda acredita que é importante a atitude isolada para resolver problemas. Seu temor é que, numa prova de matemática, se houver consultas, o aluno vai "colar" e apenas colocar os resultados das contas sem raciocinar. Ora, se a questão é essa, bastaria que a escola sugerisse questões onde, de fato, o aluno tenha que raciocinar, não só individualmente, mas em conexão com os outros. Economizemos memória e nos dediquemos a compreender a história, a geografia, a apreciar a beleza da literatura e das artes. Por ser muito difícil mensurar emoções em números, o sistema educacional prefere ignorar a educação emocional.
Em vez de assumir essa tarefa, opta pela imposição de disciplinas rígidas, castigos, chantagens, tudo para manter o controle sobre as emoções dos alunos. Imaginem o que sente uma criança de oito anos depois de quatro horas imobilizada no seu cantinho de meio metro quadrado. Deve ficar a ponto de explodir. Sua imaginação vai tirá-la da sala de aula, ocupando-a com as fantasias sobre brincadeiras, comidas, liberdade, qualquer coisa que não seja a tarefa escolar. A hora do recreio e o sinal da saída passam a ser as coisas mais queridas da escola. A grande defesa da criança contra a opressão da imobilidade é a imaginação.
A professora fala e ela não houve, desliga-se de tudo, viaja nas imagens que cria. Em resumo, a atitude corporal de uma criança no ambiente escolar, resume-se, de modo geral, a uma única coisa: ficar sentada e não se mexer, até que essa atitude seja incorporada de maneira a fazer com que ela não mais se erga. Poderá ficar sentada para sempre, mesmo quando tiver a oportunidade de se levantar. Por outro lado, a escola, como parte do mundo, poderia ser um rico e acolhedor ambiente de sons, visões, cheiros, sabores e toques, em vez de apenas seguir a tradição, segundo a qual, quem vai a uma escola, vai apenas para obedecer ordens e aprender discutíveis conteúdos de ciências. Quem garante que aprender gramática é mais importante que aprender a ouvir?
Porém, dirão os defensores da tradição, ouvir a gente aprende por aí e gramática tem que ser aprendida num lugar especializado de ensino, porque não está à disposição em qualquer lugar. Em primeiro lugar, claro que a gramática também está por aí, como os sons, e podem ser aprendidos pelas crianças, mas não da forma como os tem que ensinar o sistema de ensino, de maneira sistematizada, consciente, de acordo com um projeto de formação para a cidadania. Mozart e Bethoven também estão por aí, e, no entanto, só parte da população consegue ouvi-los.
Por mais que a natureza cante, nós, que deveríamos nos deliciar com sua música, a destruímos. Igualmente, se se deixar por conta do por aí aprender a ver, ouvir, cheirar, tocar e saborear, só alguns, aqueles que tiverem o privilégio de freqüentar ambientes favorecedores, aprenderão essas coisas. Os outros ficarão à disposição dos programas da televisão aberta e de vários outros ambientes culturalmente empobrecidos. Com raras exceções, os programas infantis de televisão, por exemplo, conseguem ser sempre piores, na luta por audiência.
Só há um aspecto que a escola privilegia tanto quanto o intelectual: o moral. A imposição de posturas corporais constitui um fortíssimo componente de educação moral. Toda vez que reduzimos o espaço de mobilização corporal, diminui, por exemplo, o barulho, restaurando-se a tradicional disciplina. A conformação corporal a um espaço de meio metro quadrado durante tantos anos, obviamente que correspondente a conformações de ordem moral.
Trata-se de uma atitude disciplinada de subserviência, incorporada a cada aula pelos alunos, de forma que, ao longo da educação escolar, educa para a subserviência, para a obediência, para a aceitação das regras tradicionalmente estabelecidas. Se o objetivo final da escola for, de fato, esse, isto é, a conformação disciplinada às regras estabelecidas na sociedade, tanto do ponto de vista afetivo, quanto intelectual ou moral, tiremos o chapéu à escola. Ela é, de fato, competente. Não é por outros motivos que o jogo é tão repudiado no ambiente educacional.
Ele é transgressor, na sua essência. Atura-se o jogo quando ele é suficientemente domesticado, atrelado a conteúdos escolares, aos quais deverá servir como fator motivacional. Porém, naquilo que ele pode ter de mais educativo, a escola não o aceita. O jogo subverte a disciplina moral da escola, recupera a mobilidade física e mental do aluno e isso contraria os princípios tradicionais do sistema escolar.

Jogo como elemento de transgressão
Não é por estar presa diariamente durante horas a uma carteira escolar, que a criança fica necessariamente impedida de jogar. Pelo contrário, freqüentemente o jogo serve-lhe de fuga de uma situação angustiante, indesejável. Enquanto a professora se esforça para que o aluno preste atenção às lições, ele se refugia em seu mundo imaginário e joga. As conseqüências dessa dispersão, no entanto, podem ser desastrosas, pois, ao final de tanta fantasia, a criança não aprende as lições escolares e deverá ser punida por isso com notas baixas.
De modo que, fantasiar em sala de aula, implica em punições. Nesse caso, o jogo como elemento de transgressão foi danoso, criou, na criança, uma relação direta com prejuízos escolares. De acordo com a linha de raciocínio que tenho seguido neste texto, conclui-se que minha solução pedagógica óbvia teria que ser propor que as crianças aprendam, também fora da sala de aula, conteúdos de qualquer disciplina.
Ora, não adianta eu sugerir isso para agora, pois, tão cedo, essa medida não será tomada. Realmente eu gostaria que toda a estrutura física da escola fosse mudada, para que os alunos tivessem espaço e liberdade de movimentação corporal. Enquanto isso não for feito, contudo, é preciso que tenhamos outras soluções. Todavia, em qualquer escola as crianças têm momentos fora de sala de aula. Elas têm as aulas de educação física, as de educação artística e os recreios. Se as aulas de educação física fossem boas, o resultado educacional já seria maravilhoso.
Acrescentando-se a isso boas aulas de educação artística e, supondo que as boas aulas dessas duas disciplinas repercutiriam nos recreios, já teríamos uma melhora significativa na educação geral de uma criança na escola. Porém, pelo menos naquilo que conheço melhor, isto é, as aulas de educação física, quando existem, pecam pela má qualidade, salvadas as honrosas exceções. Vou tratar aqui, portanto, de dar sugestões para a disciplina que está ao meu alcance.
Nada impede que a educação física, tomando consciência de que existe uma prática corporal feita permanentemente em sala de aula, que costuma ser danosa em vários sentidos, interfira nessa prática corporal. Não precisamos abandonar a idéia de que nada se pode fazer para mudar a situação escolar. As crianças não teriam que ficar imóveis o tempo todo; conheço algumas escolas que, percebendo os prejuízos da imobilidade corporal, têm tomado iniciativas de tirarem as crianças da formação tradicional, isto é, presas atrás de uma carteira.
Nesses casos elas podem, inclusive, jogar dentro da classe. Na sala as crianças podem ficar em pé, podem andar, podem se movimentar pela sala, podem mudar a disposição das carteiras. Isso só depende de um bom planejamento. Se há uma educação física marcante na educação das crianças sendo realizada dentro de sala de aula, creio que é necessário que a disciplina educação física interfira nesse ambiente. E interfira sugerindo hipóteses de que um de seus conteúdos privilegiados seja contemplado em classe: o jogo.
Muitas coisas poderiam ser comentadas a respeito do jogo, tantas são as suas características. Meu interesse imediato, no entanto, é comentar apenas o caráter de transgressor que o jogo assume freqüentemente. Tenho dito que jogar é retomar ações já aprendidas anteriormente. Ou seja, joga-se com coisas que são conhecidas pelo jogador. Daí o paradoxo: como o jogo pode ser transgressor se ele apenas faz retomar aquilo que já foi realizado anteriormente? Pois é exatamente por isso que ele é transgressor.
Quando as coisas são realizadas a título de adaptação, isto é, feitas pela primeira vez, para suprir uma necessidade, não se pode transgredir, já que as ações são orientadas pelas faltas, pelas necessidades. No entanto, quando são repetidas, não mais porque são necessárias, mas porque dão prazer (mesmo que apenas o prazer sutil advindo da sensação de ser capaz de fazer, nem sempre consciente), podem ser feitas das mais diversas formas, independentemente de haver êxito ou fracasso. Nesse caso, o fracasso, por exemplo, não resulta em danos graves, já que não busca satisfazer uma necessidade.
Não há, portanto, o compromisso objetivo que há nas ações adaptativas; no trabalho, por exemplo. E é exatamente quando jogamos com esses elementos já dominados anteriormente, que podemos correr riscos, transgredindo os compromissos assumidos nas tarefas objetivas. E, sem risco, não há jogo. Se nas ações escolares as crianças puderem jogar, poderão, conseqüentemente, arriscar, isto é, aventurar-se em situações novas, desconhecidas, correr o risco de fazer de modo diferente aquilo que já conheciam anteriormente.
Não só se vivencia o caráter prazeroso de reviver ações dominadas, como se vivencia o caráter prazeroso de vivenciar desafios, riscos. Nesse caso, elas podem transgredir as ações compromissadas com as tarefas. Dentre as marcas mais fortes do jogo, uma delas é a do risco, do inusitado, do imprevisível. Outra é o caráter subjetivo do jogo, isto é, o compromisso do jogador não é mais, acima de tudo, com algum objetivo externo a ele, mas com seus interesses pessoais.
De forma que ele pode usufruir os meios de sua própria ação, mais que quando tem que atender compromissos exteriores. Isso eliminaria as possibilidades de sala de aula de recorrer ao jogo? De forma alguma, desde que a metodologia utilizada em classe pudesse levar em conta que as aprendizagens que a criança realiza podem ser retomadas, desta vez em forma de repetições de coisas já aprendidas, em forma de desafios de novas soluções, de novas criações, em um ambiente lúdico.
Se não for pressionada pelos compromissos de cumprimento objetivo das tarefas, ou das avaliações objetivas, das notas, etc., os alunos podem recriar as tarefas, desta vez em forma de jogo, vivendo o inusitado, o imprevisível, as múltiplas possibilidades de ação que qualquer tarefa confere. Talvez persista a idéia de que o jogo só faz sentido quando é jogado livremente, sem qualquer interferência do professor. Quando ela ocorre, eliminar-se-ia seu caráter livre, transgressor. Mas não é assim. O jogo pode ser perfeitamente livre, mesmo orientado por temas gerais.
É quanto à temática sugerida que o professor pode interferir no jogo, assim como quanto às sugestões de variações de cada jogo realizado. Resta, para a sala de aula, a questão da disciplina. A objetividade das ações escolares, a pressão das notas, a imobilidade corporal própria das restrições espaciais da carteira escolar, são alguns dos fatores que mantêm a tradicional disciplina de sala de aula. Sem isso, seria possível controlar a disciplina corporal e mental dos alunos? Claro que sim, desde que o conceito de disciplina, sempre associado à não criatividade, à imobilidade física, fosse outro.
Movimentar-se, criar, encontrar soluções diferentes, falar, não poderiam ser, de imediato, considerados fatores de indisciplina. Sem dúvida isso conturbaria a tradicional arquitetura da classe mas, afinal, trata-se de algo que terá que mudar um dia. Não é possível continuarmos a conviver tão placidamente com o fracasso escolar, experiência de múltiplos fatores, dos quais, sem dúvida, um deles é a postura educacional de não tratar criança como criança ou adolescente como adolescente.
O fracasso escolar é um fato, com raras exceções. Nossos alunos não aprendem adequadamente os conteúdos declarados nos discutíveis programas educacionais, mas esse fracasso não é responsabilidade exclusiva do sistema escolar. Porém, mais que em qualquer outro aspecto, o fracasso, em meu modo de entender as questões educacionais, refere-se, especialmente, ao fato de que a escola ainda não desenvolveu pedagogias que tratem crianças como crianças e adolescentes como adolescentes. Seria possível ensiná-los se não puderem ser quem são?
O remédio que proponho para lidar com esse problema, doce para os alunos, amargo para a escola, é o jogo.

Prof. João Batista Freire
contato@decorpointeiro.com.br

Fonte:
www.decorpointeiro.com.br

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